por Nahima Maciel
Publicação: 18/01/2010 09:20
No interior do caracol em formato de oca que abriga o Memorial dos Povos Indígenas, a estudante francesa Alice Matton se encanta com os adornos coloridos em pena de arara e uma vitrine repleta de cerâmicas indígenas. A visita ao museu do índio fez sentido naquele dia. Alice acabava de presenciar uma manifestação indígena na Esplanada dos Ministérios. Uma lei aprovada no Congresso retirava a obrigatoriedade de postos da Funai em algumas regiões protegidas. Os índios não gostaram. E Alice decidiu dar uma volta no memorial para completar a experiência. Ficou frustrada. "Não há separação, está tudo misturado. Sei que as peças devem ser de vários povos diferentes, mas a mistura provoca uma leitura falsa. E não há explicações em inglês." Na mesma tarde em que Alice decidiu descobrir um pouco da cultura indígena brasileira, um casal visitava o espaço com um bebê de colo instalado no carrinho. Na saída, a surpresa. "Onde tem um ponto de táxi?", questionava. Não há táxi nas proximidades e o jeito foi pedir ajuda ao único segurança do local.
O Memorial dos Povos Indígenas fica no coração de Brasília, no Eixo que corta o centro administrativo da cidade. É vizinho a outro memorial, o JK, muito luxuoso e organizado. Mas, na oca indígena moderna desenhada por Oscar Niemeyer, nada é sofisticado. Ao contrário de seu vizinho, o prédio encerra até uma certa tristeza. O abandono das instalações torna inevitável enxergar no espaço o mesmo descaso que atinge as populações indígenas brasileiras. As lâmpadas queimadas não podem ser substituídas porque não são mais fabricadas, os vidros internos estão quebrados e o sol vaza sobre as peças expostas enquanto parte do acervo fica guardada em caixas de papelão ou no chão de uma reserva técnica sem ar- condicionado e climatização. "E não podemos mexer em nada sem pedir autorização para o Niemeyer", completa Marcos Terena, índio da aldeia Taunay (MS), militante dos direitos indígenas e atual diretor do memorial.
Terena, 55 anos, é um ex-piloto comercial formado pela academia da Força Aérea Brasileira (FAB). Fala francês, inglês e espanhol e, quando jovem, sonhava em ser piloto da Varig. Nos anos 1970, envolveu-se com a militância, brigou com a Funai e nunca mais voltou à aviação. Em agosto de 2007, aceitou o convite do secretário de Cultura, Silvestre Gorgulho, para dirigir o memorial que ajudou a fundar em 1987. Terena gostou da ideia. Achou que assim poderia contribuir para uma política cultural de preservação dos 230 povos indígenas espalhados pelo território brasileiro. "Mas não basta ter o prédio. Quando cheguei aqui, compreendi isso. Todos os diretores que passaram por aqui não fizeram política cultural indígena e não prepararam o governo de Brasília para esse encontro", constata Terena.
Quando iniciou a gestão, o diretor se deparou com uma série de dificuldades primárias. Apenas um funcionário integrava a equipe do memorial. Hoje, eles são sete. "Foi difícil achar funcionário público para trabalhar aqui", lembra o diretor. "Ninguém queria vir para cá." Na tentativa de dar vida ao local, Terena investiu em eventos que se estendessem pelas dependências do museu e parcerias com instituições que pudessem contribuir com uma pintura aqui, uma lâmpada ali e até a troca de um vidro quebrado.
Como os outros museus do Governo do Distrito Federal (GDF), o memorial não tem orçamento próprio nem autonomia administrativa, o que dificulta as parcerias. "Da última vez que fizemos um evento, a Polícia Militar veio aqui a mando do Paulo Octávio (vice-governador) e fez um relatório proibindo de fazer eventos interculturais como o Encontro dos Povos do Cerrado, porque estragaria a grama e não tinha estacionamento", lamenta Terena. "Não estamos aqui só fazendo exposição de peças indígenas. Queremos mostrar que índio não é coisa de museu, por isso são importantes esses eventos interculturais."
O secretário de Cultura, Silvestre Gorgulho, admite que o maior problema do memorial - a falta de orçamento próprio - é também um problema da própria secretaria. "A gente não tem orçamento, ele é contingenciado em 80%. A gente faz as coisas por etapa", diz. "Fiz tudo para trazer o Terena e ele tem autonomia total." Para a subsecretária de Políticas Públicas, Ione Carvalho, uma solução está em constituir uma equipe de cientistas - pesquisadores e sertanistas - para incrementar as atividades do memorial. "O problema é o orçamento. Temos o FAC para a comunidade, mas os museus de Brasília não têm nada. É uma coisa horrorosa, que me desespera. Tenho formação em antropologia social e trabalhei com índios, para mim esse museu era uma bandeira", lamenta Ione. "Estou tentando fazer uma comissão científica. Todo verdadeiro museu tem que ter pesquisadores, não pode ser apenas uma sala de exposição. Queremos fazer o desenho de uma exposição para ser colocada no museu até o fim do ano." Em abril, o memorial recebe uma exposição de peças da Fundação Darcy Ribeiro. Até lá, no entanto, vidros continuarão quebrados e "gatos" serão feitos em algumas luminárias obsoletas para não deixar o prédio sem luz.
Doações de Darcy
A principal coleção de peças do Memorial dos Povos Indígenas reúne um acervo de 380 peças doadas pelo antropólogo Darcy Ribeiro e sua mulher, Bertha. Realizada em 1997, a doação incluiu um conjunto de adornos confeccionados com plumas de arara pelos povos Ka?apor, do Maranhão. As peças datam da década de 1950 e são muito raras. "Hoje, você não encontra mais isso", garante Marcos Terena. O acervo doado pelos Ribeiro é resultado de quatro décadas de pesquisa de campo e foi coletado em todas as regiões brasileiras.
O memorial não tem museólogo nem curador. A organização das peças é feita pelo próprio Terena e uma reduzida equipe. Nem todas as peças contam com etiqueta, mas algumas vitrines informam a origem dos povos autores do artesanato e sua localização. Nas paredes e divisórias, pinturas de índios que visitam a cidade compõem o cenário. Na parte de baixo, uma área de exposições temporárias fica reservada para artistas de todo o país. Projetado tal qual uma oca ianomami, o prédio é construído em volta de uma praça externa coberta com areia e bancos de tronco de madeira. Em frente, uma varanda com estrutura para cafeteria completa a área externa. "Mas não podemos nem montar uma lanchonete aqui", lamenta Terena. Na praça central, a sombra fica por conta de uma língua de concreto apelidada de "beiço do Juruna".
originalmente publicado no Correio Braziliense.
Publicação: 18/01/2010 09:20
No interior do caracol em formato de oca que abriga o Memorial dos Povos Indígenas, a estudante francesa Alice Matton se encanta com os adornos coloridos em pena de arara e uma vitrine repleta de cerâmicas indígenas. A visita ao museu do índio fez sentido naquele dia. Alice acabava de presenciar uma manifestação indígena na Esplanada dos Ministérios. Uma lei aprovada no Congresso retirava a obrigatoriedade de postos da Funai em algumas regiões protegidas. Os índios não gostaram. E Alice decidiu dar uma volta no memorial para completar a experiência. Ficou frustrada. "Não há separação, está tudo misturado. Sei que as peças devem ser de vários povos diferentes, mas a mistura provoca uma leitura falsa. E não há explicações em inglês." Na mesma tarde em que Alice decidiu descobrir um pouco da cultura indígena brasileira, um casal visitava o espaço com um bebê de colo instalado no carrinho. Na saída, a surpresa. "Onde tem um ponto de táxi?", questionava. Não há táxi nas proximidades e o jeito foi pedir ajuda ao único segurança do local.
O Memorial dos Povos Indígenas fica no coração de Brasília, no Eixo que corta o centro administrativo da cidade. É vizinho a outro memorial, o JK, muito luxuoso e organizado. Mas, na oca indígena moderna desenhada por Oscar Niemeyer, nada é sofisticado. Ao contrário de seu vizinho, o prédio encerra até uma certa tristeza. O abandono das instalações torna inevitável enxergar no espaço o mesmo descaso que atinge as populações indígenas brasileiras. As lâmpadas queimadas não podem ser substituídas porque não são mais fabricadas, os vidros internos estão quebrados e o sol vaza sobre as peças expostas enquanto parte do acervo fica guardada em caixas de papelão ou no chão de uma reserva técnica sem ar- condicionado e climatização. "E não podemos mexer em nada sem pedir autorização para o Niemeyer", completa Marcos Terena, índio da aldeia Taunay (MS), militante dos direitos indígenas e atual diretor do memorial.
Terena, 55 anos, é um ex-piloto comercial formado pela academia da Força Aérea Brasileira (FAB). Fala francês, inglês e espanhol e, quando jovem, sonhava em ser piloto da Varig. Nos anos 1970, envolveu-se com a militância, brigou com a Funai e nunca mais voltou à aviação. Em agosto de 2007, aceitou o convite do secretário de Cultura, Silvestre Gorgulho, para dirigir o memorial que ajudou a fundar em 1987. Terena gostou da ideia. Achou que assim poderia contribuir para uma política cultural de preservação dos 230 povos indígenas espalhados pelo território brasileiro. "Mas não basta ter o prédio. Quando cheguei aqui, compreendi isso. Todos os diretores que passaram por aqui não fizeram política cultural indígena e não prepararam o governo de Brasília para esse encontro", constata Terena.
Quando iniciou a gestão, o diretor se deparou com uma série de dificuldades primárias. Apenas um funcionário integrava a equipe do memorial. Hoje, eles são sete. "Foi difícil achar funcionário público para trabalhar aqui", lembra o diretor. "Ninguém queria vir para cá." Na tentativa de dar vida ao local, Terena investiu em eventos que se estendessem pelas dependências do museu e parcerias com instituições que pudessem contribuir com uma pintura aqui, uma lâmpada ali e até a troca de um vidro quebrado.
Como os outros museus do Governo do Distrito Federal (GDF), o memorial não tem orçamento próprio nem autonomia administrativa, o que dificulta as parcerias. "Da última vez que fizemos um evento, a Polícia Militar veio aqui a mando do Paulo Octávio (vice-governador) e fez um relatório proibindo de fazer eventos interculturais como o Encontro dos Povos do Cerrado, porque estragaria a grama e não tinha estacionamento", lamenta Terena. "Não estamos aqui só fazendo exposição de peças indígenas. Queremos mostrar que índio não é coisa de museu, por isso são importantes esses eventos interculturais."
O secretário de Cultura, Silvestre Gorgulho, admite que o maior problema do memorial - a falta de orçamento próprio - é também um problema da própria secretaria. "A gente não tem orçamento, ele é contingenciado em 80%. A gente faz as coisas por etapa", diz. "Fiz tudo para trazer o Terena e ele tem autonomia total." Para a subsecretária de Políticas Públicas, Ione Carvalho, uma solução está em constituir uma equipe de cientistas - pesquisadores e sertanistas - para incrementar as atividades do memorial. "O problema é o orçamento. Temos o FAC para a comunidade, mas os museus de Brasília não têm nada. É uma coisa horrorosa, que me desespera. Tenho formação em antropologia social e trabalhei com índios, para mim esse museu era uma bandeira", lamenta Ione. "Estou tentando fazer uma comissão científica. Todo verdadeiro museu tem que ter pesquisadores, não pode ser apenas uma sala de exposição. Queremos fazer o desenho de uma exposição para ser colocada no museu até o fim do ano." Em abril, o memorial recebe uma exposição de peças da Fundação Darcy Ribeiro. Até lá, no entanto, vidros continuarão quebrados e "gatos" serão feitos em algumas luminárias obsoletas para não deixar o prédio sem luz.
Doações de Darcy
A principal coleção de peças do Memorial dos Povos Indígenas reúne um acervo de 380 peças doadas pelo antropólogo Darcy Ribeiro e sua mulher, Bertha. Realizada em 1997, a doação incluiu um conjunto de adornos confeccionados com plumas de arara pelos povos Ka?apor, do Maranhão. As peças datam da década de 1950 e são muito raras. "Hoje, você não encontra mais isso", garante Marcos Terena. O acervo doado pelos Ribeiro é resultado de quatro décadas de pesquisa de campo e foi coletado em todas as regiões brasileiras.
O memorial não tem museólogo nem curador. A organização das peças é feita pelo próprio Terena e uma reduzida equipe. Nem todas as peças contam com etiqueta, mas algumas vitrines informam a origem dos povos autores do artesanato e sua localização. Nas paredes e divisórias, pinturas de índios que visitam a cidade compõem o cenário. Na parte de baixo, uma área de exposições temporárias fica reservada para artistas de todo o país. Projetado tal qual uma oca ianomami, o prédio é construído em volta de uma praça externa coberta com areia e bancos de tronco de madeira. Em frente, uma varanda com estrutura para cafeteria completa a área externa. "Mas não podemos nem montar uma lanchonete aqui", lamenta Terena. Na praça central, a sombra fica por conta de uma língua de concreto apelidada de "beiço do Juruna".
originalmente publicado no Correio Braziliense.
Nenhum comentário:
Postar um comentário